“O Último Azul” e o primeiro passo: Por uma sociedade que valorize o processo natural do envelhecimento
Assim que eu soube que o tema da redação do Enem 2025 foi sobre o envelhecimento da sociedade brasileira considerei pertinente essa questão, finalmente, ter sido colocada no centro do debate, tendo em vista que mais de quatro milhões de pessoas debruçaram-se para refletir sobre a seriedade dessa pauta para a construção de um país mais acolhedor e que saiba integrar a intergeracionalidade com equidade.
Foi numa tarde primaveril do derradeiro setembro, quando assisti ao filme “O Último Azul”, no Cine Bardot em Búzios, que fui atravessada de maneira aguda pelo intrigante questionamento: Se envelhecer é destino comum, por que concebê-lo com dignidade ainda é privilégio de poucos? O filme projetou um facho de luz em uma realidade que desnuda um possível Brasil do amanhã e a relação desconectada com sua população idosa.
Muito embora a ficção tratasse de uma distopia, havia uma verossimilhança que parecia transpassar a tela e se sentar na poltrona ao lado, quando a narrativa refletia a negligência diária e a prática discriminatória nomeada etarismo, a qual empurra as pessoas de mais idade para o lado de fora da vida social fechando-lhes as portas da vida simbólica do país, como se envelhecer não fosse motivo para ser concebido como dádiva e sim como um defeito existencial.
Sigo eu, em minha vã filosofia, escolhendo acreditar que o tempo quando se encontra com o talento, acaba se transformando em aliado e não inimigo pessoal. E é justamente na oportunidade desse encontro que a arte dialoga com ambos e promove uma perfeita simbiose.
Vejo Maria Bethânia, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Fernanda Montenegro e tantos outros gigantes que seguem em comunhão com o tempo e produzindo na plenitude do poder criativo. A cada aparição e fala pública desses artistas tem-se uma resposta viva que não abre espaço ao contraditório das crenças limitantes que insistem em ditar quando é que começa e termina a potência humana.
Nesse viés, destaco ainda o ator Marco Nanini que, há cerca de um ano o assisti no palco da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. Na ocasião, convalescente e em cadeira de rodas, o ator entregou ao público “O Traidor”, monólogo dirigido por Gerald Thomas, com uma performance tão intensa que fez ruir qualquer noção rasa sobre o paradigma de vitalidade. Porque entendi, já há algum tempo, que vitalidade não é sobre arcabouço físico, é sobre espírito e o desejo de seguir produzindo, comunicando, construindo e atribuindo sentido à própria existência. Nanini, naquela noite, era a personificação evidente de que arte e vida podem sim desafiar a lógica de qualquer limite e estigma social impostos de fora para dentro.
Urge a ampliação do debate sobre envelhecimento, começando por romper com práticas discriminatórias e a ampliação de políticas públicas que incluam o envelhecimento como pauta de governos.
Leitura, cinema, música, teatro, dança: tudo o que amplia o olhar também amplia o horizonte. E quem amplia o horizonte envelhece melhor, porque o futuro que vê é feito de menos ameaças e mais possibilidades. Talvez seja esse o recado contido nas entrelinhas do Enem 2025, do filme, da arte e dos mestres que seguem inspirando: envelhecer não é desaparecer. Envelhecer é permanecer existindo e colorindo a vida de azul, mesmo quando o mundo tenta apagar essa existência, pintando-a de cinza.
Nota da Semana
No próximo dia 5 de dezembro o Clube Cultural 3meia8 irá promover uma ação multicultural em parceria com o Centro Cultural Marcelo Sampaio, para celebrar e fomentar a Consciência Negra. Haverá apresentação teatral, samba, exibição de audiovisual e diversas outras manifestações culturais, com início às 20h. Siga o espaço no Instagram, para mais informações: @3meia8 .
“Fantasias Textuais”
“[…] Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.”
Trecho do poema “Guardar”, de Antonio Cicero.
